Uma menina que foi estuprada pelo próprio pai e engravidou aos 12 anos entregou o bebê para adoção, em São Carlos (SP), quatro meses após dar à luz. O criminoso, que também é acusado de matar a mãe dela, continua foragido. O caso foi noticiado pelo g1 São Carlos e Araraquara em novembro de 2021 e faz parte da série de reportagens multimídia do EPTV2 e do g1 chamada “Abuso” — que tem como base o livro da jornalista e apresentadora Ana Paula Araújo e aborda a violência contra mulheres e crianças a partir de experiências de pessoas da área de cobertura da emissora. Violência em família A garota, hoje com 13 anos, foi violentada no ambiente que deveria estar protegida, dentro de casa pelo próprio pai. O homem é acusado de matar a mãe da menor. Mesmo assim, ela e um irmão acabaram indo morar com ele. “Eu fui morar em uma kitnet mais ele. Aí acabou que eu estava dormindo e acordei com um peso em cima de mim”, contou. “Ele matou a minha mãe de paulada. Aí eu achei que ele ia me tratar diferente, não ia fazer isso comigo. Igual um pai trata a sua filha com amor e carinho, eu achei que ele ia fazer isso, mas eu vi errado.” A vítima não sabe dizer quantas vezes foi abusada. “Ah, muitas vezes, eu não sei quantas, mas foram muitas. Tinha uma vez que ele abusou de mim a noite toda. Aí abusou de mim da noite até no outro dia de manhã”, contou. “É muito cruel porque é naquele ambiente em que a criança deveria se sentir mais protegida, onde ela deveria ser cuidada. E por que a gente vê isso acontecer? Porque, na maioria dos casos, a gente convenciona chamar de pedofilia o abuso contra crianças e adolescentes. Só que a pedofilia é um distúrbio psiquiátrico, que poucos abusadores têm. O que acontece na maioria dos casos é que os abusadores de crianças e adolescentes escolhem aquela vítima que é mais fraca, mais fácil de dominar, de chantagear, de ameaçar, que está dentro de casa, num ambiente onde ele acha que vai ser mais seguro para ele cometer aquele crime”, afirmou Ana Paula Araújo. Do aborto para a adoção A menina pensou em fazer um aborto – procedimento permitido pela legislação brasileira em casos nos quais a gravidez é resultante de violência sexual -, mas depois desistiu. “No começo sim, eu queria tirar. Só que depois que fez o primeiro ultrassom, que eu ouvi o choro dos bebês no hospital, eu não quis mais abortar. Eu falei que ia direto, com a gestação até o final”, disse. Com uma gestação de risco, ela passou por uma cesariana e, após quatro meses e meio após dar à luz, a bebê foi entregue para adoção por decisão da própria vítima. “Eu quero que ela seja feliz, que ela tenha uma vida boa, que ela estude e seja alguém na vida”, afirmou. Resgatada A garota foi resgatada dos abusos do pai por uma conhecida da família, quando ela já estava com quatro meses de gravidez. “[Quando eu descobri] Eu desacreditei, eu desacreditei. Eu falei: ‘cara, eu não acredito que um pai tem a coragem de fazer isso com uma filha e a filha caçula dele. Quem deveria proteger, é quem abusa. Um ano abusando dela’, contou a mulher. Hoje, ela tem a guarda da menor e espera que o estuprador pague pelo crime. “Fez sóbrio! Não bebe, não fuma, não usa droga, nada. É a índole que não presta, é a índole da pessoa que não vale nada. É a dessa cara. Ele não pode estar solto”, disse indignada. Após investigação da Polícia Civil de Goiânia (GO), onde aconteceu o crime, o pai da menina foi indiciado por estupro de vulnerável, cárcere privado e abandono intelectual, teve mandado de prisão decretado, mas não foi preso e é considerado foragido. A menina fica à espera de uma punição. “Ele é um monstro. Eu tenho nojo dele. Por tudo que ele fez comigo e por ter matado minha mãe de paulada. Eu tenho nojo dele”, afirmou. Direito à decisão Para a escritora e educadora sexual Anna Luiza Calixto, fundadora do Projeto Social Bem Me Quer e ativista na área do direito da criança e do adolescente desde 2008, a sociedade tende a impor à criança vítima de violência sexual os seus preceitos e valores, sem respeitar as suas decisões. “É outra violência obrigar a criança a seguir ou não respeitar o desejo dela de continuar com a gestação. É é uma escolha da vítima, o corpo é da vítima, quem vai lidar com essa decisão depois é a vítima”, afirmou. O perigo mora próximo De acordo com a advogada Luciana Temer, que trabalha no Instituto Liberta contra o abuso sexual de crianças, mais de 4 meninas com menos de 13 anos são estupradas por hora no Brasil. 40,8% das violências sexuais contra crianças são praticadas por pais e padrastos, 8% por avós e 37% por irmãos, primos e outros parentes. “Quando a gente olha a faixa etária das vítimas incapazes de consentir, a gente tem vítimas de um ano, dois. Quase 30% têm, no máximo, quatro ou cinco anos. A gente está falando de crianças, de bebês que sofrem violência sexual”, explicou a socióloga e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno. Em alguns casos, a violência é de conhecimento dos parentes que deveriam dar a devida proteção à criança. “A família para a maior parte dos brasileiros é um espaço de proteção, mas para muitas crianças é um espaço de violência. A gente não pode colocar a família acima de tudo, tem que reconhecer que a família e o lar são espaços de violência e isso precisa ser combatido e não ignorar que essas violências estão acontecendo porque essa violência marca essa criança para a vida toda”, afirmou Samira. Educação estupradora De acordo com as especialistas ouvidas na reportagem, a sociedade tem uma grande parcela de responsabilidade nos casos de estupro por não ensinar suas crianças a se defenderem e até a incentivar, mesmo que inconscientemente, o machismo. “Nós estamos formando potenciais abusadores. É uma equação muito disfuncional. Nós mulheres, desde a tenra idade recebemos uma educação castradora. Por outro lado, uma mãe chega em uma festa de aniversário infantil com o filho homem diante de outras meninas e diz para as outras mães: ‘prendam suas cabritas que o meu bode está solto’, como se ele devesse se orgulhar desde a tenra idade, de representar uma ameaça, de oferecer risco para o gênero feminino”, afirmou Ana Luiza. “Olhar para quem comete a violência sexual não é olhar para uma única pessoa, é olhar para toda uma estrutura social que te autorizou a fazer isso. Te autorizou a tocar numa menina, num menino, te autorizou a estuprar, te autorizou a ceifar a infância”, completou. A educadora salienta que é necessário investir em educação sexual como forma de conscientização e medida para diminuir os números desse crime, muitas vezes, naturalizado pela sociedade. “Se não há limites para a violência, porque é que através dessas falácias, desses mitos e desses falsos argumentos que orbitam em torno da educação sexual, nós colocamos limite para a educação. A educação sexual não é exibir cenas de sexo real, ensinar posições, não é sobre isso. É sobre entender o conceito de concentimento, o direito de dizer não, entender-se como dono ou dona do seu corpo, direito para denunciar e, principalmente, sobre desnaturalizar a violência, tirar desse contexto de ‘é assim mesmo, ele é homem, ele tem instinto’.” Por Heitor Moreira, EPTV2]]>