Na Benfica, Saboreando um Dióspiro
Nem língua de sogra é tão doce
Por Geraldo Gabliel
ANSELMO VENTURA
Rua Rei Katyavala, nº 99
Luanda
ANGOLA – ÁFRICA
Dentre os amigos africanos que Geh Latinus conheceu em Portugal, Anselmo foi o mais simpático e que lhe impressionava pelo seu nível cultural e, sobretudo, pela sua paciência e serenidade. Lembra-se de que, naquela aventura de se estabelecer como imigrante em Lisboa, favorecido pelas novas normas da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) foi cooptado por uma empresa portuguesa de limpeza e higienização de colchões, carpets e almofadas. Fomos iludidos juntos: – tantas ofertas de porta-em-porta e, nada de vender – sem estímulos – a gente precisava de um endereço e de um contrato de trabalho… Após o almoço, sentamo-nos nas escadarias do Sport Lisboa e Benfica – quando, para adoçar um pouco nosso estado de ânimo, compartilhamos um saboroso caqui… isto, o que ele, e os portugueses chamam de dióspiro. (Aqui é tempo de caqui, comprei no Gonçalves).
Anselmo, angolano, em Portugal – fã do Brasil. Saboreando um dióspiro, na escadaria do Benfica (ou era no Colombo Shopping Centre) de Lisboa diz:
– O Cão, navegador, desembarcou na Angola em 1842, 18 anos antes dos outros portugueses chegarem ao Brasil. Somos 30 milhões de pessoas na Angola, falamos mais de 20 línguas diferentes (Kimbundu, Umbundu, Ngnaguela, Kwanyama, dentre outras), além do português – ainda assim, nos entendemos muito bem. Escravidão: aconteceu?!
A este questionamento sobre escravidão no Brasil deixo aqui uma reflexão: – A evolução dos conhecimentos e práticas comerciais e políticas não teriam hoje nos tornado a todos escravos de um sistema econômico dominante – independente da cor de nossa pele? – A propósito, não seríamos, como imigrantes, voluntários à liberdade opressiva em país estranho? Fugindo da condição social deprimente em seu próprio país natal?
De Luanda a Salvador: Coincidências que Unem Angola e Brasil
A ligação entre Angola e Brasil não está apenas no idioma ou na maneira como as pessoas se entendem. A história fez questão de garantir que esse vínculo fosse profundo e, por vezes, doloroso.
Foi em 1482 que o navegador Diogo Cão desembarcou em Angola, 18 anos antes da chegada dos portugueses ao Brasil. A presença lusitana iniciaria séculos de exploração e domínio, tornando Angola um dos principais pontos de tráfico negreiro para as Américas.
Dos 10 milhões de africanos escravizados que foram enviados ao Novo Mundo, aproximadamente 5 milhões passaram por Angola. A maioria foi destinada ao Brasil, onde suas vidas eram reduzidas à servidão forçada. A grande questão que ainda ecoa é: será que, de alguma forma, esses descendentes continuam sendo escravos de um sistema que, embora menos explícito, perpetua desigualdades? Para saber, leia a história recente do Brasil…
Ainda assim, entre as sombras do passado, há também beleza na resistência e na cultura compartilhada. A influência dos idiomas bantu moldou o português falado no Brasil, deixando marcas indeléveis em palavras como “cafuné,” “quitanda,” “muvuca” e “senzala.” O Brasil, por sua vez, fez sua marca em Angola, seja através das novelas que emocionaram gerações ou dos ídolos da música sertaneja que conquistaram fãs em Luanda. E também estão por lá uns charlatões brasileiros que pregam o Evangelho da Prosperidade (a deles mesmos)…
A conexão se estende até a música e a dança: no Brasil, o samba embala multidões, mas sua origem pode estar no Semba angolano – ritmo que une pessoas em festas e celebrações. Essa semelhança cultural é apenas uma das tantas que mostram que, apesar das fronteiras, esses países dançam no mesmo compasso.
E não podemos esquecer que, quando Angola finalmente conquistou sua independência em 1975, foi o Brasil que primeiro reconheceu sua soberania, reafirmando que, mesmo separados por quilômetros de oceano, esses países continuam irmãos, notadamente presente em nossa ascendência afrodescendente miscigenada.
Anselmo termina seu dióspiro e sorri ao lembrar do Miss Universo de 2011, realizado em São Paulo, onde Leila Lopes, representante de Angola, recebeu a coroa. Era quase poético: uma angolana sendo celebrada justamente no país onde os costumes de seu povo havia deixado marcas profundas no seu DNA cultural.
E assim, de Luanda a Salvador, de Lisboa a São Paulo, segue essa conexão invisível, mas incontestável. Angola e Brasil: duas nações que compartilham mais do que histórias, compartilham uma essência – uma alma que atravessa mares e une pessoas, como se fossem parte da mesma família.
Angola e Brasil, dois países separados pelo Atlântico, mas unidos por laços que vão muito além da história colonial. Quem diria que, entre as cicatrizes da colonização, surgiriam semelhanças que fazem até os mais céticos acreditarem que esses dois lugares compartilham uma alma?
Imagine caminhar pelas ruas de Luanda e ouvir alguém dizer “Você já chegou!”- mesmo quando você está bem ali, parado na frente da pessoa. Soa familiar? No Brasil, costumamos inventar gentilezas e expressões enigmáticas, mas essa saudação angolana é de outro nível. Ou então, sentar-se à mesa de uma família angolana e dar de cara com o “feijão maluco.” Mas, espera, cadê o feijão? O prato, na verdade, é feito de tamarindo!
O Brasil também tem suas pegadinhas gastronômicas – afinal, quem nunca foi enganado por um “Romeu e Julieta” esperando um doce romântico e encontrando uma fatia de goiabada com queijo? Mas, e os doces que têm seus nomes questionados pelo Identitarismo?
Não faz muito, éramos crianças, a gente saboreava – politicamente corretos – uma Nega Maluca – e hoje…
A partir de agora, o nome do bolo de chocolate deixou de ser “nega maluca” e passou a ser “afrodescendente”, a “língua de sogra” agora será “pão doce mole”, “Maria Mole” passa a se chamar “sorvete mole” e “teta de nega”, “Nha Benta”.
[…] O documento foi alvo de críticas do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo. Nesta quarta-feira (16), ele disse pelo Twitter que o sindicato está “perseguindo, implacavelmente, o bolo Nega Maluca. Também estão na mira da patrulha politicamente correta a Maria Mole, Teta de Nega e Língua de Sogra. Querem criminalizar bolos”.¹
Não para por ai…
Maria-mole, Nega Maluca, Floresta Negra, Espera Marido – todos esses e muito mais foram taxados como doces preconceituosos e, portanto, que deveriam ter seus nomes completamente trocados. A ação surgiu recentemente de uma iniciativa chamada “Respeito na Medida”, lançado pela empresa Guarani Mais Que Açúcar, que fez uma votação para que novos nomes fossem decididos e substituíssem os atuais.²
E o que dizer da música? E nossa fala…
Aqui, o samba reina, mas lá, o Semba dita o ritmo das festas. O nome, curiosamente, não é coincidência: o Semba Angolano foi uma das inspirações para o Samba Brasileiro. Parece-me que a batida atravessou oceanos e desembarcou nos morros cariocas sem perder o gingado.
Se há uma história que define a conexão profunda entre Angola e Brasil, é a influência das línguas Bantu no português brasileiro. Palavras como “cafuné,” “quitanda” e “muvuca” fazem parte do nosso dia a dia sem que muitos saibam que vieram da terra onde a Kizomba embala casais em dança.
E não podemos esquecer que quando Angola finalmente conquistou sua independência em 1975, foi o Brasil que primeiro reconheceu sua liberdade. Como um irmão mais velho que olha para o caçula e diz: “Vai lá, o mundo é seu!”
Mas talvez a maior das coincidências tenha acontecido em 2011, quando uma angolana foi coroada Miss Universo no Brasil. No palco, Leila Lopes não apenas levou a coroa, mas reafirmou a beleza e o talento de um povo que compartilha histórias, cultura e, acima de tudo, identidade.
No fim das contas, Angola e Brasil não são apenas países ligados por um passado comum. São como primos que cresceram em casas diferentes, mas que, ao se encontrarem, percebem que têm os mesmos traços, as mesmas expressões e aquele jeitinho de celebrar a vida que faz tudo parecer mais bonito.
¹https://portalc1.com.br/politicamente-correto-padaria-muda-nomes-e-nega-maluca-agora-e-bolo-afrodescendente/ Acesso em 17 de maio de 2025.
² https://causaoperaria.org.br/2022/nem-os-doces-escaparam-do-identitarismo/ Acesso em 17 de maio de 2025;